Cheguei um pouco tarde para ver a brilhante passagem do Dr. Sócrates pelo Timão. Nascido em 80, tinha apenas dois anos em 82, três em 83, e minhas lembranças mais remotas de torcedor Corinthiano são de 85, mais ou menos. Ainda assim, vi Sócrates exibir seu elegante futebol na Copa de 86, que foi tão intensa para mim. E sempre o via como um ídolo da Fiel. Mas, por razões óbvias, meus primeiros grandes ídolos alvinegros foram Ronaldo, Biro-Biro, Neto… Ou seja, jogadores que me trouxeram as alegrias das conquistas em 88, 90, e daí por diante.
Minha admiração maior por Sócrates começou tardia, conforme me aprofundava na história do nosso Todo Poderoso, e foi se solidificar e intensificar mais e mais muito tempo depois, quando já maduro, comecei a delinear minhas orientações políticas e valores pessoais.
Quando finalmente entendi o que significou aquela tal de Democracia Corinthiana no contexto histórico brasileiro, eu já conhecia muito sobre a história de fundação do clube, sua origem popular, a brava luta operária para prevalecer num universo dominado pela elite paulistana, e etc. E a partir de então, Sócrates Brasileiro passou a representar, para mim, a personificação mais clara do que é o Corinthians, da sua razão de existir e de seus valores indeléveis. E esta razão pode ser expressada em uma só palavra que o Doutor adorava usar: povo.
Por tudo isso, ontem, ao saber de sua morte, resumi dizendo que:
Sócrates talvez não seja o melhor jogador da história do Corinthians (mas é um dos melhores), e certamente não é o mais vencedor com a camisa do Timão. Mas é aquele de quem mais me orgulho.
A perda
Ao saber da notícia, senti uma tristeza profunda, como é difícil sentir por alguém que não conhecemos pessoalmente. Mas às vezes acontece, como já contei aqui recentemente.
Esse tipo de dor é maior quando sentimos que havia muita contribuição a ser dada ainda. E na cabeça do Doutor ainda fervilham idéias geniais e um espírito crítico aguçado como poucos, como podemos detectar em sua crônica recentíssima, de menos de 10 dias, no Carta Capital.
Perdemos alguém que nos levava a pensar diferente. E eu perdi a esperança de um sonho: ver Sócrates e Wladimir, de alguma forma, no comando do Sport Club Corinthians Paulista. Algo que volta e meia era levantado por torcedores, mas que eu sei que dificilmente aconteceria, e que nem sei se seria uma boa mesmo. Mas seria no mínimo diferente – como tudo que o Doutor fazia.
O Penta
Para Sócrates, ser campeão não era o mais importante. Para a Fiel também não é. Mas é ótimo! E o Doutor sempre soube disso. Costumava dizer que as conquistas do campo amplificavam a voz do povo.
E como bem disse o Magrão certa vez…
Num país em que os mais fracos social, política e economicamente não têm voz nunca, neste caso têm. Através do Corinthians, eles conseguem se manifestar, quer dizer, a torcida corinthiana utiliza o seu clube, o seu time, a sua expressão física, como forma de contestação de tudo aquilo que não lhe é dado de direito
Ontem o povo do Dr. Sócrates chorou sua morte, mas bradou feliz: Corinthians Pentacampeão Brasileiro! Uma conquista com cara de Corinthians, com cara de povo. Sofrida, batalhada com gana mais do que técnica. E só nós, Corinthianos, sabemos o quão longa e difícil foi essa batalha. Quanta coisa ouvimos, quanto preconceito enfrentamos, quanta inveja e “secadeira”… Tudo porque o Corinthians se tornou o time mais odiado do país. Em partes por culpa de seus dirigentes e suas alianças obscuras, é verdade, mas principalmente por conta de perseguições e maquiavelismos com os quais temos que lutar todos os dias, desde 1910.
Tivemos que aturar um técnico que parece ter sido feito para o Corinthians, pois garante sofrimento extremo até o último instante, e que ontem abusou da irritabilidade. Colocamos medalhões no banco e vencemos com guerreiros incansáveis, com o Liédson que, mesmo com dores, foi um dos principais responsáveis pela arrancada final, com gols decisivos, como sempre. Seguramos e enervamos nossos rivais, com provocações malandras, mas dignamente populares, como Luizinho fazia ao sentar na bola em frente ao zagueiro deles, ou como Edílson e suas embaixadinhas…
Eu não sei até que ponto a morte do Doutor pode ter influenciado o desempenho dos jogadores… É difícil imaginar isso. Mas certamente ajudou para que a Fiel, ainda mais emotiva, ainda mais “louca”, bradasse e cantasse pelos quase 100 minutos de jogo!
E circula pela Web uma frase que ele teria dito em entrevista nos anos 80. Não pude confirmar a veracidade da autoria, mas nem é preciso: se ele disse isso, fantástica coincidência, mas se não disse, certamente pensava. Tem a cara dele.
Quero morrer num Domingo, e com o Corinthians Campeão
Este título é para você, Doutor! O título que lhe faltou com a camisa do Timão, mas que ajudou a conquistar ontem, inflamando os corações da Fiel que empurrou o time em mais uma batalha contra o maior rival.
A homenagem
Senti muita vontade de estar no Pacaembu ontem, para sentir a emoção daquele título mais de perto. Lamentei um monte de decisões que me levaram a não estar lá. Mas o que mais queria ter presenciado e vivido foi o momento da homenagem da Fiel nas arquibancadas e dos Mosqueteiros em campo. Uma das imagens mais lindas desses mais de 30 anos de torcida pelo Timão. E que infelizmente as TVs não souberam captar em sua essência. Queria estar lá… Mas essa torcida me enche de orgulho! Obrigado a todos os amigos Corinthianos que estavam lá, gritaram por mim e que cerraram seus punhos ao alto para eternizar este ídolo!
Um busto é justo
Sócrates nunca abraçou a atual diretoria corinthiana. Discordava de uma série de coisas que aconteceram na gestão Sanchez, como os altos valores para manter o Ronaldo na equipe para pouco retorno técnico, e estratégias de “business” que só afastam o que há de mais popular nesses 101 anos de história do Time do Povo.
Por conta disso, ou por medo da força política do Doutor, dirigentes e principalmente adestrados dessa administração achincalharam e tentaram manchar a imagem do ídolo da Fiel.
Com sua morte, vejo os mesmos que o chamavam de coisas que nem quero repetir aqui agora reverenciando seu nome. Ótimo. Tarde, mas melhor assim. E se o medo político se foi com sua morte, seria justo agora dedicar a ele um busto no clube. Ou uma estátua de sua imagem com o punho cerrado. Simbólico.
O filme
A frase do título deste post também está no título do documentário “Ser Campeão é Detalhe: Democracia Corinthiana”, que, coincidentemente, será lançado nesta semana (dia 8/12, quinta-feira). O projeto vem sendo trabalhado há 3 anos. No início, de forma independente, a partir de um trabalho de conclusão de curso de estudantes da Midialogia da Unicamp. Agora, com produção da DNA Filmes.
O filme conta com vários depoimentos de jogadores do time da democracia (82-83), inclusive, é claro, o nosso eterno Dr. Sócrates.
Não dá pra não assistir. A boa notícia é que a partir de Sexta-feira, dia 9, ele estará disponível gratuitamente pela Internet!